Raúl Prebisch
"Economista do Ano 1960"

 


Morto em 1986, Raúl Prebisch, um dos mais importantes economistas argentinos do século 20, entrou para a história como autor da teoria da dependência - que lançou a idéia de países centrais, que eram abastecidos com matérias-primas por países periféricos. A influência de Prebisch rompeu fronteiras, ganhou o mundo e influenciou o então professor Fernando Henrique Cardoso que, anos mais tarde, escreveu o livro ''Dependência e desenvolvimento na América Latina'', marca do começo da trajetória intelectual do futuro presidente do Brasil.

Poucos dias após a morte do amigo, Celso Furtado escreveu um artigo que, se não fosse a data (18/05/86), bem poderia ter sido escrito na semana passada, tamanha a atualidade das idéias que Prebisch defendia. Sua Argentina andava envolvida em problemas econômicos e com a dependência do comércio exterior. A atual Argentina vive o mesmo dilema.

A amizade de Celso Furtado e Prebisch, forjada nos salões da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal) - então o principal fórum de discussões sobre a realidade da região - permitiu a Celso acesso a informações que mostram a importância de Raúl para a economia argentina e latino-americana. A certa altura, Furtado conta detalhes da relação de Prebisch com o Juan Domingo Perón, ex-presidente da Argentina, e a quem o economista recusou ajuda quando a ditadura peronista já agonizava.

Furtado, ex-ministro do Planejamento e um dos mais atuantes pensadores da realidade brasileira, faz um relato emocionado, de um homem que morreu logo depois de deixar a assessoria do ex-presidente argentino Raúl Alfonsín. Uma circunstância que, para Celso Furtado, marca o fim da vida de um homem de ação que recusava o papel de simples testemunha.

O essencial em Raúl Prebisch era a ação. Seu pensamento esteve sempre a serviço de alguma causa e reflete em boa medida as circunstâncias que delimitaram o campo em que pôde agir. A Argentina de sua juventude era um caso exemplar de economia em rápido desenvolvimento na qual tudo girava em torno do comércio exterior. Nada nesse país lembrava o que depois se viria a conhecer como a problemática do subdesenvolvimento. Tudo se passava no âmbito de uma economia de mercado, os salários eram elevados, a classe empresarial, vigorosa. Porém, o comportamento dessa economia era atípico no que respeita as relações internacionais. À falta de uma percepção clara da situação por parte de seus dirigentes, a economia argentina sofria de instabilidade e pagava mais do que a cota de sacrifícios que lhe correspondia nos ajustamentos que os ciclos econômicos impunham às transações internacionais.

Prebisch logo percebeu que a teoria corrente dos ajustamentos das balanças de pagamento ignorava esses casos atípicos e conduzia, em seu país, a políticas totalmente equivocadas. É certo que essa constatação havia sido feita por outras pessoas. O que singulariza Prebisch é ter colocado esse problema no quadro maior do desenvolvimento da economia capitalista, visto do ângulo da propagação do progresso técnico. Esse avanço, ele o fez por etapas, apoiando-se na experiência que lhe proporcionou a participação em órgãos de comando da economia argentina. De início, imaginou que a saída poderia estar na cooperação internacional, ilusão que logo se desvaneceu em face do comportamento da Inglaterra, em 1931, introduzindo a preferência imperial, e em 1932, na chamada Conferência do Ouro.

A economia argentina sofria de sua relação assimétrica com a Inglaterra: seu principal produto de exportação - a carne - fora desenvolvido para o mercado inglês e praticamente não possuía mercado alternativo. Para continuar exportando para esse mercado, a Argentina deverá obrigar-se a manter em elevado nível, não obstante a queda de suas exportações, a transferência de dividendos dos vultosos capitais ingleses investidos em estradas de ferro. Essa confrontação com a Inglaterra nos anos da depressão está na raiz das reflexões de Prebisch sobre a estrutura centro-periferia, geradora de efeitos de dominação, que somente podiam ser superados mediante ação deliberada nas relações internacionais por parte das economias primário-exportadoras. Ele será o pioneiro da política de controle de câmbios e o teórico da ''substituição de importações'' como caminho para a industrialização periférica.

Não fossem as circunstâncias que rodearam a ascensão de Juan Perón ao poder, na primeira metade dos anos 40, e a influência de Prebisch na Argentina teria sido consideravelmente maior. Contou-me ele que, por muito pouco, não houve uma aproximação sua com o coronel Perón, na primeira fase deste. Todas as conjecturas aqui são possíveis. Houvesse Perón recebido um pouco de instrução econômica, chegando a perceber não apenas os pontos fortes mas também os fracos da economia argentina, e quiçá sua paranóia não fosse a mesma. Anos depois (às vésperas do golpe que o derrubou), Perón buscou contato com Prebisch, sendo a vez deste recusar. Quando, em 1955, sai Perón, Prebisch já havia feito sua opção definitiva por uma carreira internacional, o que deu à sua influência um alcance muito maior, mas o privou de exercer na Argentina o papel de estadista que lhe parecia naturalmente reservado.

Sendo um pensador que não se desprendia do real, Prebisch era dotado de excepcional poder de concentração e de capacidade para traduzir a realidade em categorias abstratas. Demais, nenhuma inibição doutrinária o detinha no uso da imaginação. As inibições podiam advir de seu senso de oportunidade no uso das idéias, mas nunca de autocensura intelectual. Estimulava a todos que com ele colaboravam a desenvolverem cabalmente o próprio pensamento, explicitando todas as premissas e descobrindo todos os corolários. Falecia-lhe contudo o interesse pela especulação puramente gratuita, muitas vezes essencial para o progresso da ciência.

O debate que provocou, nos anos 50, no mundo acadêmico, em torno da divisão internacional do trabalho, é elucidativo da força e das limitações de seu trabalho teórico. Seu ponto de partida era o problema dos ajustamentos dos balanços de pagamento, conforme referimos. No centro dessa questão estava a ''circulação do ouro'', ou seja, os movimentos internacionais de capitais. Por outro lado, a Argentina se beneficiava de importante influxo migratório e mesmo de importação estacional de mão-de-obra européia, os chamados trabalhadores golondrinos. A mobilidade institucional dos fatores era, portanto, um dado imediato de observação, do qual ele partiu. Mas essa mobilidade não assegurava a propagação internacional do progresso técnico, a cuja lentidão se atribuía a tendência à concentração da renda nas economias centrais. Sua crítica, portanto, era à ordem econômica internacional existente. Ora, a teoria prevalecente do comércio internacional não se fundava na observação da realidade, sendo um esforço para explicar a razão de ser da divisão do trabalho entre regiões, na hipótese de imobilidade de fatores. Havia, portanto, um desencontro fundamental entre o discurso de Prebisch e aquele dos professores universitários que continuavam convencidos da indestrutibilidade da teoria das vantagens comparativas. Prebisch era acoimado de ''ignorante'', o que não impedia que suas idéias influenciassem consideravelmente os formuladores de política econômica. Contudo, Prebisch não se deteve para desenvolver teoricamente o seu pensamento, como se temesse abrir o flanco às aguerridas falanges dos teóricos ortodoxos. Os esboços de teorização sobre o ''capitalismo periférico'', ensaiados no final dos anos 70, valem apenas pelas ricas sugestões que contêm.

A referência que me vem ao espírito, quando penso em Prebisch, é Goethe, com quem se parecia inclusive fisicamente. Tinha o mesmo senso de universalismo, a mesma fortaleza interior e a mesma ânsia de viver cada momento plenamente. Tratava de não dispersar-se, o que o fazia privar-se de muitas coisas. Mas tinha momentos de arrebatamento, inclusive de paixões, deixando-se arrastar, mas, como Goethe, guardando para si a última palavra. Centrava-se no presente, não sendo fácil induzi-lo a relembranças. Podíamos passar horas bebendo um bom tinto chileno enquanto observávamos as montanhas nevadas da varanda de sua casa de campo nos arredores de Santiago. E também podíamos marchar quilômetros pelas encostas próximas. Seu pensamento estava sempre voltado para o mundo real, em particular aquele sobre o qual podemos agir. Não se permitia devaneios. Quando abandonou sua última função de assessoria, junto ao governo de Raúl Alfonsín, veio-lhe o sentimento de que sua vida ativa se esgotava. Não lhe interessava o papel de simples testemunha. Desejou que a morte lhe chegasse rápida, sem vacilações. Cumpriu-se o destino.

Fonte: JORNAL DO BRASIL - ECONOMIA



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